quarta-feira, 6 de junho de 2018

Os netos da dona Jane

Não sei se era exatamente no domingo dia das mães, mas era aquele final de semana. Sábado a noite? Sexta? Já não lembro. O fato é que chegava em casa. Abri a porta do elevador, já no meu andar, e assim que sai pude ouvir o barulho que vinha de dentro do apartamento ao lado do meu. É uma distância de alguns metros - um espaço fora do normal para os padrões atuais esse do elevador até a porta - que também ajuda a ecoar vozes de festa, de reunião... de crianças. Crianças. Os netos da dona Jane, no caso. Crianças que eu nunca vi, mas ouvi ao longo dos anos que moro nesse prédio. Os netos da dona Jane brincam no hall do nosso andar. Nos dias em que visitam a avó, na chegada ou na saída, é comum ouvi-los correndo, gritando animados, quase abafando as vozes dos adultos que tentam contê-los, ao menos um pouco, dessa natural euforia da infância.

Bem, não lembro se era exatamente no dia, mas era por causa do dia, certamente. Vozes. Das crianças, dos adultos, essa polifonia chamada família atrás de uma porta. Também não lembro exatamente se tinha tomado uma ou outra cerveja que me deixasse mais suscetível nesse dia. Não era tarde. Dez na noite, no máximo? Não sei mais. O fato é que, naquele momento, esse barulho já nem tão raro das crianças veio como um soco no estômago. Das crianças e da família. Como um grande pedaço de giz riscando uma lousa com aquele barulho estridente, sublinhando, pelo incômodo, uma frase. "Você nunca mais vai viver algo assim".

E lá estou eu, sete anos no máximo, rabiscando com letras de recém alfabetizado uma lousa, com um giz duro que quase risca o quadro em lugar de realmente escrever: "Você nunca mais vai viver algo assim". Enquanto eu, sete anos no máximo, escrevo, eu, quarenta e quatro, sentado na primeira fileira de carteiras, anoto: "Você nunca mais vai viver algo assim.". Porque você já está meio velho para ter filhos, que dirá ver netos crescerem. Viveu algo assim como filho, já quase não como neto, dificilmente como pai e certamente jamais como avô. Essa é a meia-idade: o momento de fazer contas. Eu, com sete anos, sublinho a frase. Eu, com quarenta e quatro, debocho irônico do menino na minha frente, me fazendo de superior, como se a provável solidão dos sessenta, setenta, etc fosse uma escolha consciente, não um destino que aos poucos se constrói.

Eu, com sete anos, imagino ser pai aos dezoito. Com dezoito, aos vinte e um. Com vinte e um, aos trinta. Com trinta, aos trinta e cinco. Com trinta e cinco, aos quarenta. Com quarenta, não imagino mais. Com quarenta e quatro me imagino com sete, pensando se o destino dos que não farão família é virarem pais de si mesmos no passado.

Entro em casa e penso nos meus netos que não existirão, e por um segundo invejo os netos da dona Jane, que tem mãe e avó em pleno dia das mães. Ou na sexta, no sábado daquele final de semana.

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