sexta-feira, 8 de junho de 2018

Aura

A questão de adequação ao gênero na escolha das personagens quase nunca se impôs como algo determinante. Aliás, acho que "a personagem" é melhor que "o personagem", já que vem de "persona", substantivo feminino. Já vi nascerem Estragon, Clov, Florentino Ariza, Lear, Gregor, Ariel, Próspero, Horário, Peer Gynt e Hamlet mulheres. Sempre achei que uma personagem masculina pode ser feita por uma atriz sem prejuízo nenhum à peça ou às necessidades do texto. Não sei se pelo acaso, pelas pessoas que se aproximam do trabalho, por todo mundo que vai cruzando meu caminho em contextos e grupos diferentes, mas o feminino tem sido para mim o espaço da versatilidade. Não se se porque culturalmente "aceitamos" mais uma mulher fazendo um homem em cena que o contrário. Mas o fato é que, se em algumas situações uma atriz acaba fazendo uma personagem masculina por necessidade (em especial em contextos escolares onde geralmente a  relação de gênero entre personagens e elenco é proporcionalmente inversa), na maior parte das vezes acaba virando opção. Com o perdão dos ótimos atores com os quais tive o prazer de trabalhar, confesso que pude ter como parceiras de criação atrizes incríveis.

Hoje, em especial, me deu saudade da Aura. Eu me lembro da Aura fazendo um espetáculo da minha amiga Glaucia Felipe, chamado "Caixa de Pandora". Aura vinha de Brasília e nos conhecemos por essa amiga em comum, nós todos na Graduação do Departamento de Artes Cênicas da ECA-USP. Ano 2000. Em 2001/2002, ela esteve no elenco do meu trabalho de formatura, "O evangelho de Victor Frankenstein" e no meu primeiro trabalho já formado, "O cheiro das amêndoas amargas". A Aura tem uma qualidade no seu trabalho de atriz que é uma intensidade gigante, que acessa uma energia (palavra horrível, mas na falta de uma melhor) muito potente. Fez um Anjo andrógino no "Frankenstein" que era uma das melhores sacadas da peça, com muletas feito asas e um Florentino Ariza comoventemente patético e romântico no "Cheiro". Foi uma parceira empenhada e apaixonada pelo que fazia ao longo dos três ou quatro anos que trabalhamos juntos. Depois Aura focou na sua formação, trabalhou com Beth Lopes na Cia Teatro em Quadrinhos, onde dividiu a cena com o Leo Moreira, que hoje dirige a Hiato, onde Aura é produtora.

Amanhã estreia "Odisseia", o novo trabalho da companhia, e a Aura estará em cena. Parece uma trivialidade falar de uma estreia, ou da Aura em cena, especialmente quando o grupo já está tão rodado e com uma trajetória consolidada. Parece que nada é novidade. Mas eu acho que é. E eu fico imaginando a Aura voltando para a cena, para uma cena tão carregada, com certeza, da sua história. E do seu amor pelo que faz. A Aura provavelmente foi a primeira pessoa que eu vi brigar por causa de um trabalho, sem que aquilo afetasse o pessoal. Brigar nitidamente pelo trabalho. Sem o ego daqueles que se sentem feridos porque sua opinião não venceu ou sua colaboração apareceu menos. Não. Por querer que o trabalho seja o melhor possível. E Aura, em cena, sempre quis ser o melhor possível. Por ela sim - qualquer atriz quer isso, óbvio - mas principalmente pelo trabalho.

Não sei se a Aura lerá isso, acho que ela não é muito fá de internet e tal. Mas já fico ansioso pela sua estreia, ou reestreia. E por ver seu coração em cena de novo. Dando vida à cena.

Estou aqui, torcendo por essa vida toda. 

quarta-feira, 6 de junho de 2018

Os netos da dona Jane

Não sei se era exatamente no domingo dia das mães, mas era aquele final de semana. Sábado a noite? Sexta? Já não lembro. O fato é que chegava em casa. Abri a porta do elevador, já no meu andar, e assim que sai pude ouvir o barulho que vinha de dentro do apartamento ao lado do meu. É uma distância de alguns metros - um espaço fora do normal para os padrões atuais esse do elevador até a porta - que também ajuda a ecoar vozes de festa, de reunião... de crianças. Crianças. Os netos da dona Jane, no caso. Crianças que eu nunca vi, mas ouvi ao longo dos anos que moro nesse prédio. Os netos da dona Jane brincam no hall do nosso andar. Nos dias em que visitam a avó, na chegada ou na saída, é comum ouvi-los correndo, gritando animados, quase abafando as vozes dos adultos que tentam contê-los, ao menos um pouco, dessa natural euforia da infância.

Bem, não lembro se era exatamente no dia, mas era por causa do dia, certamente. Vozes. Das crianças, dos adultos, essa polifonia chamada família atrás de uma porta. Também não lembro exatamente se tinha tomado uma ou outra cerveja que me deixasse mais suscetível nesse dia. Não era tarde. Dez na noite, no máximo? Não sei mais. O fato é que, naquele momento, esse barulho já nem tão raro das crianças veio como um soco no estômago. Das crianças e da família. Como um grande pedaço de giz riscando uma lousa com aquele barulho estridente, sublinhando, pelo incômodo, uma frase. "Você nunca mais vai viver algo assim".

E lá estou eu, sete anos no máximo, rabiscando com letras de recém alfabetizado uma lousa, com um giz duro que quase risca o quadro em lugar de realmente escrever: "Você nunca mais vai viver algo assim". Enquanto eu, sete anos no máximo, escrevo, eu, quarenta e quatro, sentado na primeira fileira de carteiras, anoto: "Você nunca mais vai viver algo assim.". Porque você já está meio velho para ter filhos, que dirá ver netos crescerem. Viveu algo assim como filho, já quase não como neto, dificilmente como pai e certamente jamais como avô. Essa é a meia-idade: o momento de fazer contas. Eu, com sete anos, sublinho a frase. Eu, com quarenta e quatro, debocho irônico do menino na minha frente, me fazendo de superior, como se a provável solidão dos sessenta, setenta, etc fosse uma escolha consciente, não um destino que aos poucos se constrói.

Eu, com sete anos, imagino ser pai aos dezoito. Com dezoito, aos vinte e um. Com vinte e um, aos trinta. Com trinta, aos trinta e cinco. Com trinta e cinco, aos quarenta. Com quarenta, não imagino mais. Com quarenta e quatro me imagino com sete, pensando se o destino dos que não farão família é virarem pais de si mesmos no passado.

Entro em casa e penso nos meus netos que não existirão, e por um segundo invejo os netos da dona Jane, que tem mãe e avó em pleno dia das mães. Ou na sexta, no sábado daquele final de semana.

segunda-feira, 28 de maio de 2018

Bem, ressuscitei o antigo blog. Na verdade, recriei com o mesmo nome, pelo simples falto de que o anterior (com a singela diferença das maiúsculas em A Vida e a Época de Gregor Samsa) já é história. Muita coisa ali não corresponde ao que eu penso hoje e sim, é claro que isso faz parte da nossa mudança constante. Mas já que é para voltar à essa plataforma, vamos ao mais divertido: criar um blog novo. O velho está aí listado, se alguém tiver alguma curiosidade.

O Facebook há tempos ficou chato. Como todo bom usuário do Facebook, é preciso dizer isso. A questão é que os blogs nos colocavam em um universo pessoal e focado, me parece. Com alguma subjetividade ao menos um pouco resguardada pelo foco de não ter um feed de notícias passando com um menu de discussões a seu dispor, mais uma barra de bate-papo mostrando os amigos online para requisitar ou ser requisitado. Não tenho foco. Sou disperso e muitas vezes ajo meio randomicamente.

Começar um post no Facebook é uma somatória eterna dos riscos de já prever as discussões, de cutucar, de "pedir biscoito" (esse termo é extensível à todo tipo de militância ou classe, no sentindo de dar a impressão que sua opinião só quer agradar determinada audiência), de pregar para convertido, falar mais do mesmo, escrever com seus contatos te olhando por cima dos ombros. Nos últimos tempos o número de posts apagados supera em dez para um (pelo menos) os publicados. E por que? Primeiro porque minha opinião muitas vezes não soma nada ao que já li no meu feed sobre o assunto. Por que não compartilhar, simplesmente, ao invés de dizer a mesma coisa com outras palavras?  Depois porque, se não há paciência para discutir, nem comece. E às vezes dá preguiça realmente. Há outros motivos aqui e acolá, mas em resumo isso já dá um panorama.

Aí pensei: aquela história de blog era legal. Você escrevia sem a esperança exata de virar um grande debate, criando um texto que deveria ter algo próximo a uma vida independente de curtidas, compartilhamentos, discussões e tal. No mínimo, um exercício. Para quem começou três peças de teatro que estão inacabadas, pode ser uma maneira de provocar alguma coceira no cérebro, ou doer um pouco os dedos. Vai que ajuda.

Mas voltando ao Facebook. Me dá uma certa preguiça a questão política atual. Como o discurso de ódio chega e torna algumas coisas indiscutíveis. Vira questão de fé, ou de torcida. Dificilmente nos colocamos em um lugar de ouvir o outro e refletir nossas crenças, e o radicalismo impera onde poderia funcionar uma troca real de pontos de vista. Não, não incluo aí discurso de ódio, preconceito disfarçado de "opinião", nem o orgulho vaidoso de uma ignorância retrógrada que prevê algumas regras baseadas nos bons costumes. Dessa linha para cima, ok, poderíamos rever mais conceitos sim. Mas só dessa linha para cima.

Isso posto, estamos aí. Vamos ver se aparece fôlego e paciência para o blog ocupar o tempo e o espaço do Zuckerberg.

Aura

A questão de adequação ao gênero na escolha das personagens quase nunca se impôs como algo determinante. Aliás, acho que "a personagem&...